Contos de Fados Politicamente Correctos

Mas, naquele ano, o Inverno chegou muito cedo (ou foi o Verão que se foi embora muito depressa, dependendo da orientação climatérica de cada um) e os campos rapidamente deixaram de produzir. A pobre cigarra achou-se vitima dos caprichos das alterações meteorológicas. Andou saltitando pelos campos em busca de sustento de qualquer espécie. Ter-se-ia contentado com uma migalha, uma casquita, um semente ressequida, mas nada encontrou que fosse comestível.

Até que vislumbrou a formiga, que, com toda a energia, arrastava atrás de si uma bela palha de trigo. A fome da cigarra levou a melhor sobre o seu orgulho e ela avançou, com a ideia de pedir à formiga que com ela repartisse um bocadinho do seu imenso pecúlio alimentar. Só que a formiga, mal avistou a cigarra, desatou a gritar.

«AAAAHHHHHHHHH!!! O que é que tu queres? Que estás aqui a fazer? Vinhas roubar a minha palha, não vinhas? Eu sei que tu andavas à espera do dia em que me havias de roubar tudo o que tenho! Eu conheço bem a tua laia!»

A cigarra bem tentou interrompê-la, mas a formiga prosseguiu: «Não me digas nada! Não me venhas com falinhas mansas e promessas vãs! Para ter o que tenho fartei-me de trabalhar, coisa que não está na moda em certos círculos.»

A cigarra respondeu delicadamente: «Mas olha, Irmã Formiga, com certeza que tens mais do que algumas vez serás capaz de comer.»

«Isso é um problema meu», disse a formiga, «e, que eu saiba, não vivemos em nenhuma republica socialista, daquelas que até o sangue nos chupam… pelo menos por enquanto! Vê lá se tomas juízo, cigarra! O único sítio onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário.»

«Sabes, é que eu estava com ideias de ir para a Austrália, mas o tempo a modos que mudou e tudo o que era comida desapareceu…»

«É assim que funciona um mercado livre, minha. Vê se aprendes a lição»

Se estivessemos a falar dos tradicionais contos de fadas que todos conhecemos, a história ficaria por aqui, e nada mais haveria a acrescentar, mas neste conto politicamente correcto, o resultado é ligeiramente diferente.

A meio da conversas aparece um louva (que já não é a deus, porque isso foi proibido por decisão judicial), que se apresenta como auditor, que resulta, nas palavras do autor:

…bastando que se diga que o produto do açambarcamento feito pelo ganancioso insecto foi confiscado e destinado a fins comunitários mais responsáveis, na sequência da integração da formiga no sistema correccional. Enquanto isso, a cigarra organizava um programa para os jovens insectos da região desejosos de intercâmbio cultural com países dotados de climas mais quentes. Graças a uma redistribuição dos recursos do governo (e aos bens da formiga), a cigarra vem desde então até hoje guiando expedições de surfistas.

Assim, James Finn Garner agarra em vários contos de fadas e reescreve-os de forma, como ele próprios lhes chama “Politicamente correcta”.

Um livro que se pode ler ou não, mas sobre o qual não se pode certamente deixar de pensar depois que se ler.


Source: Páginas Tantas